Pais “chatos” criam filhos melhores? O desafio de educar na era digital

Segundo pesquisas recentes, 93% dos brasileiros entre 9 e 17 anos já são usuários de internet, o que evidencia a necessidade urgente de educar pais, professores e os próprios jovens sobre o uso seguro e consciente desse ambiente.

Diante desse desafio, a advogada Alessandra Borelli — especialista em Direito Digital e Proteção de Dados — escreveu o livro “Crianças e Adolescentes no Mundo Digital” (editora Autêntica), um guia que não busca demonizar a tecnologia, mas sim oferecer ferramentas para que os mais novos possam aproveitá-la sem se tornarem vítimas de suas armadilhas.

A seguir, compartilhamos um trecho que reflete a preocupação central da obra: como garantir que as novas gerações desenvolvam uma relação saudável com a internet, equilibrando liberdade e segurança.

O neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, afirma que os dispositivos digitais estão afetando de forma negativa o desenvolvimento neurológico de crianças e adolescentes.

Segundo ele, testes de QI têm mostrado que, pela primeira vez desde que essa medição começou a ser feita, as novas gerações são menos inteligentes que as anteriores, ou seja, os nativos digitais são os primeiros filhos a ter QI inferior ao dos pais.

Ele, inclusive, contesta o conceito de nativos digitais, ou seja, a ideia de que as crianças dos dias de hoje tenham maior habilidade com as novas tecnologias do que as de gerações anteriores.

O que acontece é que elas já nascem vendo os pais com celulares nas mãos. E, conforme vão ficando mais velhas, começam a observar atentamente o que acontece ao seu redor e aprendem a usar as ferramentas que estão à sua disposição — que são concebidas para que qualquer pessoa aprenda a utilizá-las com facilidade.

É o que sempre digo: crianças são como esponjas, e, se você as coloca do lado de um adulto que não desgruda de um smartphone, de um tablet, automaticamente ela vai absorver esse comportamento.

Se esse aparelho for deixado nas mãos dela, é natural que passe horas no seu dia agindo da mesma forma como observou o adulto interagindo com o smartphone. Por isso as crianças mexem no celular sem medo.

Veja só que curioso: nós, adultos, às vezes pegamos o smartphone e ficamos receosos de apertar um botão e desregular tudo, estragar as configurações. É muito interessante que, se você entrega o smartphone na mão de uma criança, ela vai apertando tudo, vai tentando até dar certo.

Ou seja, enquanto o adulto fica desesperado, com medo de apertar algo errado, a curiosidade, a ousadia e a inocência da criança a levam a fazer descobertas que talvez seus pais nunca consigam fazer.

De fato, muitos pais têm “presenteado” seus filhos com celular sem pensar muito. Pesquisas apontam que há muitas crianças e adolescentes que sequer sabem andar de bicicleta sem rodinhas, nadar e/ou até mesmo amarrar seu tênis sem a ajuda de um adulto, mas, em compensação, sabem mexer no smartphone “como ninguém”.

No entanto, não é porque “sabem” usar o aparelho que estão prontos para navegar pela internet. Não é porque uma criança conduz bem uma bicicleta que está pronta para ter uma moto. Não é porque dirige bem um carrinho de controle remoto que está pronta para assumir a direção de um automóvel.

Dominar o smartphone para as crianças é superfácil, mas pode ser perigoso, se não forem devidamente instruídas. Elas são espertas, inteligentes, mas são muito vulneráveis a atitudes externas.

Não têm discernimento completo, porque são seres em condição peculiar de desenvolvimento e, fisiologicamente, continuam idênticas a todas as crianças de quaisquer gerações, ainda que sejam super-habilidosas.

Claro que há algumas variáveis de criança para criança. Muitos pais acreditam que seus filhos sejam diferentes e muito menos ingênuos do que os outros. Podem até ser, mas não podemos subestimar jamais sua vulnerabilidade.

Há outra questão importante no que diz respeito às novas tecnologias: a possibilidade da realização de várias atividades ao mesmo tempo — comportamento conhecido como “media multitasking”.

Isso é muito comum entre crianças e jovens com acesso a dispositivos eletrônicos, que jogam, ouvem música, postam nas redes sociais, fazem tarefas escolares, tudo ao mesmo tempo — e, cá entre nós, é comum entre muitos adultos também. Quem nunca enviou uma mensagem no celular enquanto cozinhava ou consultou os e-mails enquanto falava ao telefone ou durante uma reunião?

Embora isso possa parecer uma vantagem trazida pelas novas tecnologias, estudos mostram que o cérebro não é capaz de realizar simultaneamente duas ou mais atividades que exigem atenção e concentração. Para conseguir fazer isso, o cérebro teria de usar a mesma rede de neurônios nas ações, o que, segundo especialistas, é fisiologicamente impossível.

Assim, o que ele faz é alternar rapidamente entre uma atividade e outra, o que resulta em respostas automáticas, ações impulsivas e processamento de informações sem profundidade e senso crítico. As consequências disso são dificuldade de concentração, desinformação e vulnerabilidade diante dos riscos da internet.

É muito importante lembrar que brincar é um direito garantido a toda criança, presente inclusive na Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, e no Estatuto da Criança e do Adolescente. O brincar tem uma função no desenvolvimento, na convivência. E não deve ser substituído pelo uso de tecnologias ou da internet, mesmo por aplicativos considerados educacionais.

Veja, não é somente questionarmos o que a criança está fazendo na internet ou no celular, mas também o que está deixando de fazer enquanto está conectada.

E tem mais: você sabia que nem os grandes gurus da internet deixam que seus filhos tenham acesso irrestrito a telas? Bill Gates, da Microsoft, por exemplo, disse que os celulares nunca foram permitidos em sua casa durante as refeições e que seus filhos só ganharam um aparelho quando completaram 14 anos de idade. Já Steve Jobs, da Apple, proibia os filhos de usar o iPad, um produto da sua própria empresa, e limitava o uso de tecnologia pelas crianças.

Se eles tinham essa preocupação em casa, acredito que seja recomendável que nós, que não somos gênios da tecnologia e não conhecemos como eles tudo o que está por trás das novas ferramentas, também pensemos sobre isso em relação aos nossos filhos. A responsabilidade é nossa (e a orientação, também)!

O fato é que nenhum pai ou mãe entrega um smartphone para uma criança ou um adolescente pensando: “Opa, meu filho vai ser vítima ou infrator de um crime digital” ou “minha filha vai ficar vulnerável a aliciadores sexuais”.

Não há dúvida de que todas as decisões de um pai e de uma mãe em relação aos seus filhos são sempre tomadas sob a perspectiva de estar fazendo a coisa certa. No entanto, entregar uma ferramenta a uma criança que abre um canal de comunicação com o mundo e confere acesso a qualquer tipo de conteúdo requer atenção particular, sobretudo porque, não somente do ponto de vista moral e afetivo, mas também legalmente, aos pais cumpre o dever de criar e dirigir a educação de seus filhos menores, assim como responder pela reparação civil de prejuízos causados por eles a terceiros.

Você é o personal trainer do cérebro do seu filho

Outra questão fundamental que devemos levar em consideração é que, convenhamos, nenhum filho ou filha se porta 100% de acordo com as instruções que seus pais lhe passam. Mas nem por isso deixamos de orientá-los, pelo contrário, seguimos cuidando, ensinando, repetindo, acolhendo, repreendendo, falando de outro jeitinho…

Insistência que me lembra que, certa vez, li algo a respeito que me marcou bastante. O norte-americano Daniel Siegel, explicava, analogicamente, que o cérebro da criança e do adolescente é como um músculo, que precisa ser exercitado para se desenvolver bem e se tornar resistente e mais integrado.

E sabe quem é o personal trainer? Nós! Isso mesmo, podemos e devemos falar, falar e falar quantas vezes acharmos necessário.

Cansei de ouvir coisas do tipo “puxa, todo mundo pode, menos eu”, “você é a mãe mais chata que existe”. Quanto essas frases afetam você? Como você as encara? E quanto ao que os outros dizem sobre você?

Muitas vezes outras mães, outros pais, vão falar, assim como os amigos dos seus filhos, que a sua criança ou adolescente é o único que não tem um smartphone. Qual é o peso que isso tem na sua vida? E na vida dos seus filhos?

Sim, porque vão passar por outros julgamentos ao longo da vida e precisam estar prontos para lidar com isso. E nós também. No fundo, acabamos nos preocupando muito com as nossas inquietações/dúvidas/dilemas e questionando nossa capacidade de educar baseados no que outras pessoas dizem para nós e sobre nós.

Mas, de novo, quão importante isso é para você, de verdade? Há algum tempo li uma reportagem sobre um estudo feito na Inglaterra que apontou que mães chatas criam filhos mais bem-sucedidos.

A partir daquele momento, minha vida mudou! Descobri que estou no caminho certo. E olha que não sou a única a pensar assim. Quando compartilhei essa constatação durante uma palestra, foram muitas as mães que começaram a rir e se identificaram.

Mas, brincadeiras à parte, o fato é que nossas decisões não podem ser pautadas por aquilo que os outros pensam, pelo menos não em relação aos nossos filhos.

noticia por : Gazeta do Povo

22 de fevereiro de 2025 18:25

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