Ruth de Souza foi a primeira atriz a representar o Brasil em um prêmio de cinema

Neste domingo, a cerimônia do Oscar pode marcar um dos momentos mais importantes para o cinema brasileiro. Concorrendo em três categorias, o filme “Ainda Estou Aqui”, do diretor Walter Salles, pode finalmente levar a estatueta dourada. A atriz Fernanda Torres também disputa o prêmio de melhor atriz, aumentando a expectativa do público.

Mas essa não é a primeira vez que uma brasileira é reconhecida internacionalmente em premiações desse porte. Antes mesmo da mãe Fernanda Montenegro, que também é consagrada por seus papéis e prêmios internacionais, um outro rosto da dramaturgia levou o cinema nacional para o exterior décadas atrás.

Em 1953, Ruth de Souza representou o Brasil no Festival de Veneza por sua atuação em “Sinhá Moça”, filme dirigido por Tom Payne e Oswaldo Sampaio que disputou o Leão de Ouro, prêmio principal do evento. Sua performance chamou tanta atenção que ela virou uma das favoritas para levar a Copa Volpi, o prêmio do festival para os melhores atores e atrizes entre os filmes concorrentes, ao lado de estrelas como Katharine Hepburn, Michèle Morgan e Lilli Palmer.

Segundo especialistas ouvidos pela DW, a indicação teve um peso forte na época. O Festival de Veneza, o mais antigo do cinema mundial, é um dos que mais tem prestígio no setor.

“Cannes é o mais importante, mas Veneza é o mais antigo, então, tem um ‘saborzinho’ mais especial ganhar lá”, explica Chico Fireman, crítico de cinema e integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). “O Leão de Ouro é um dos prêmios mais respeitados do cinema mundial”, complementa.

Embora tenha saído sem o troféu, Ruth de Souza deixou sua marca no festival e ajudou a colocar o Brasil no radar do cinema internacional.

Ao longo de sua carreira, a atriz acumulou participações em filmes, novelas e peças teatrais, consolidando-se como uma das figuras mais importantes da dramaturgia nacional. Seu trabalho abriu caminho para gerações futuras, incluindo artistas como Zezé Motta e Taís Araújo, que a reconhecem como referência, reafirmando a inspiração em entrevistas e posts nas redes sociais.

Trajetória: teatro, novelas e cinema

Ruth de Souza nasceu no Rio de Janeiro em 12 de maio de 1921 e passou a infância em uma fazenda no interior de Minas Gerais. Começou a se interessar por teatro ainda jovem, ao assistir a um espetáculo no Teatro Municipal do Rio.

Mas foi no Teatro Experimental do Negro (TEN), liderado por Abdias do Nascimento, que a atriz iniciou sua carreira, estreando em “O Imperador Jones”, de Eugene O’Neill, em 1945.

“O TEN não foi apenas um grupo teatral, mas também um movimento político e artístico, que visava debater a representatividade negra no Brasil e promover a igualdade racial, com atividades como o jornal O Quilombo e cursos de alfabetização para trabalhadores no prédio da UNE (União Nacional dos Estudantes])”, explica Mariana Mayor, professora do departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da USP.

“Foi no TEN que Ruth foi reconhecida como atriz profissional, e ali foi uma das primeiras artistas a entrar no mercado das artes no Rio de Janeiro, a primeira atriz negra a se apresentar no palco do Teatro Municipal do Rio”, diz Mayor.

Em 1948, Ruth se lançou no cinema com “Terra Violenta”, adaptação de obra de Jorge Amado. Atuou em diversas produções de grandes empresas como Atlântida, Maristela Filmes e Vera Cruz, com destaque para “Ângela”, de 1951, “Terra é Sempre Terra”, de 1952, e “Sinhá Moça”, de 1953, filme que lhe rendeu reconhecimento internacional.

Além disso, Ruth foi reconhecida com uma bolsa da Fundação Rockefeller, o que a levou a estudar nos Estados Unidos, onde aperfeiçoou sua formação e se preparou para desafios profissionais ainda maiores.

De volta ao Brasil, continuou a se destacar no cinema e na televisão, conquistando papéis importantes. Em 1969, tornou-se a primeira atriz negra a protagonizar uma novela na TV Globo, “A Cabana do Pai Tomás”, ao lado de Sérgio Cardoso.

Ruth permaneceu relevante na cena artística brasileira por várias décadas, participando em filmes e novelas até os anos 2000. Seu último trabalho na televisão foi na série “Se Eu Fechar os Olhos Agora”, também da TV Globo, que estreou no primeiro semestre de 2019. A atriz morreu em julho do mesmo ano, aos 98 anos.

Simbolismo para atrizes negras

A presença de Ruth de Souza em uma premiação internacional foi um marco não apenas para o cinema brasileiro, mas também para a representatividade negra nas telas. Em uma época em que atrizes negras raramente tinham papéis de destaque, sua indicação ao prêmio em Veneza simbolizou um avanço na luta por mais espaço na indústria cinematográfica.

Para Fireman, a trajetória da atriz no Festival de Veneza se destacou porque, naquela época, atores negros tinham ainda menos espaço do que hoje. “O fato dela ter chamado a atenção e ter sido considerada para uma premiação já a colocou em um rol de atrizes diferenciadas”, explica. Ele também destaca que sua atuação fez com que a questão racial ficasse em segundo plano diante da qualidade de seu trabalho.

A professora de cinema Ana Roberta Alcântara, da FAAP, reforça que Ruth enfrentou dificuldades ao longo da carreira, mas persistiu. “Ela ouviu que não haveria espaço para ela como atriz por ser negra, mas ocupou esses espaços. Foi a primeira atriz brasileira a concorrer a um prêmio internacional”, afirma.

Segundo Alcântara, a sociedade da época tinha um padrão rígido sobre os papéis que cada um poderia ocupar, e não era comum que uma atriz negra brasileira alcançasse visibilidade em um dos festivais mais prestigiados do mundo.

Já para Mayor, da ECA-USP, a indicação de Ruth de Souza ao prêmio tem um peso simbólico por desafiar valores ideológicos presentes na própria indústria cinematográfica. “A valorização de padrões de atuação ligados a fenótipos e origem social, junto à persistência do racismo anti-negro, estavam em jogo no festival”, analisa. Ela lembra uma fala da atriz em sua biografia: “O fato é que não existia espaço para o ator negro. Era uma realidade da época. Hollywood também massacrava seus artistas.”

Legado pouco lembrado

Apesar de ser uma das pioneiras do teatro e cinema brasileiro, Ruth de Souza enfrentou o apagamento de sua trajetória, um fenômeno comum na história das artes no país, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem.

Para Mayor, isso é reflexo dos conflitos raciais e das lacunas históricas que, embora hoje questionadas, ainda persistem no imaginário coletivo. “Até pouco tempo, Ruth de Souza era um nome raramente lembrado. E até pouco tempo, atores brancos pintavam seus rostos de preto para representar personagens negros”, observa.

O esquecimento de sua história é também parte de um quadro mais amplo, onde o reconhecimento das conquistas de artistas brasileiros, especialmente negros, é limitado. Fireman reforça essa visão, lembrando que, em muitas ocasiões, o público brasileiro tem uma memória curta sobre os feitos cinematográficos do país. “Nosso foco recai sobre os prêmios de prestígio, como o Oscar e Cannes, enquanto esquecemos marcos importantes”, explica, citando como exemplo a conquista da Palma de Ouro pelo Brasil em 1962 com o filme “O Pagador de Promessas“.

A falta de uma premiação para Ruth de Souza, especialmente o Leão de Ouro no Festival de Veneza, é destacada como sintoma de um problema mais profundo: o preconceito racial que permeia a história do cinema brasileiro. Embora sua atuação tenha sido o grande destaque em “Sinhá Moça”, a ausência de um prêmio oficial tornou sua história “mais nebulosa”, segundo Fireman, contribuindo para o apagamento de sua importância.

noticia por : UOL

2 de março de 2025 17:10

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