Homens, estudantes e moradores de São Paulo e Rio de Janeiro foram a maioria das vítimas da ditadura militar identificadas oficialmente, segundo dados do ObservaDH (Observatório Nacional dos Direitos Humanos), iniciativa do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
A análise leva em consideração o número da CNV (Comissão Nacional da Verdade) de 434 pessoas vítimas do Estado de 1946 a 1988. Historiadores ouvidos pela Folha, porém, apontam a necessidade de problematizar os dados, uma vez que o número real de vítimas tende a ser bastante superior, o que pode camuflar o impacto do regime em relação a outros grupos sociais.
Segundo o levantamento, o período mais brutal do regime foi de 1969 a 1978, depois do AI-5 ( Ato Institucional nº 5), quando foram contabilizadas 351 pessoas mortas ou desaparecidas.
O estudo também aponta mortes antes da instauração da ditadura, “evidenciando que a perseguição política já existia”, e em seus anos finais. De 1979 a 1985, por exemplo, foram registradas 20 vítimas mesmo com as negociações para a abertura política, “demonstrando que a repressão persistiu até os momentos finais do regime”.
A análise dos dados apontou que 82,5% das pessoas mortas e desaparecidas na época eram filiadas a organizações políticas. Os filiados a partidos políticos compuseram 37,3% da amostra, e aqueles filiados a sindicatos, 4,1%. Não filiados a organizações políticas compuseram 17,5% do total.
Quanto à ocupação, grande parte (140) era de estudantes, seguida de operários (57) e trabalhadores rurais (30). Jornalistas aparecem em quarto lugar junto a professores (28 cada).
Já a média de idade das vítimas foi de 32,8 anos. A maior parte, 77,4%, tinha entre 18 e 44 anos. O levantamento também aponta cinco vítimas de 12 a 17 anos, além de uma criança de menos de um ano de idade morta pelo regime.
Segundo o ObservaDH, 11,8% do total eram mulheres (51 pessoas). A proporção daquelas que foram assassinadas aumentou significativamente no final do regime militar, aponta o levantamento.
“No período de 1979 a 1985, o final do regime militar, a proporção de mulheres assassinadas em relação aos homens assassinados foi significativamente maior do que nos anos anteriores, chegando a representar 35% das mortes. Além disso, as mulheres tendiam a ser mais jovens do que os homens: 68,7% delas tinham entre 0 e 29 anos. Entre os homens essa porcentagem era de 48,3%.”
Quanto a regiões geográficas, houve registros de vítimas fora do Brasil, como no Chile e na Argentina. No território nacional, crimes foram registrados em 15 estados e no Distrito Federal. A concentração maior foi nas capitais (62,7%), principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, cidades que contaram com 47,2% das mortes.
Pará, Maranhão e o atual Tocantins tiveram 70 vítimas na época, número inflado pela guerrilha do Araguaia, tornando-se o terceiro território com mais mortes. Os dois primeiros são os estados do Rio de Janeiro, com 114 casos, e de São Paulo, com 101.
Especialistas ouvidos pela Folha, porém, destacam que o perfil real de todos os vitimados pelo regime é provavelmente muito mais amplo do que o retratado pelo levantamento do ObservaDH. Isso porque o número oficial de mortos pela ditadura é ainda hoje alvo de discussão, com grande parte dos historiadores entendendo que a cifra oficial da Comissão Nacional da Verdade foi bastante conservadora.
Segundo Gabrielle Abreu, historiadora e gerente de memória no Instituto Marielle Franco, os dados do levantamento refletem um “equivoco metodológico” da comissão, que, apesar de esforços posteriores para pensar o impacto do regime sobre grupos minorizados, “acabou, de forma deliberada, contemplando um perfil específico de vítima”.
Marcia Carneiro, professora de história da UFF (Universidade Federal Fluminense), afirma que a violência atingiu grupos muito mais amplos da sociedade, ainda que alguns fossem menos visibilizados. “Ainda não sabemos o tamanho da violência que ocorreu na época, o que pode refletir no que se sabe sobre o perfil das vítimas”, afirma.
De acordo com Lucas Pedretti, historiador e coordenador da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, a cifra de 434 vítimas reconhecidas “faz parte de um processo histórico por meio do qual um conjunto muito restrito de sujeitos e grupos conseguiu obter esse reconhecimento público como vítimas da ditadura”.
Ele lembra que a própria CNV reconheceu mais de 8.000 mortes de indígenas atreladas ao período, ainda que não tenha contado a cifra no número final de vítimas em uma atitude, afirma Pedretti, “paradoxal”.
Além dos indígenas, outro exemplo de vítimas subrepresentadas nos dados são as pessoas negras, muitas das quais foram alvo do Esquadrão da Morte nas periferias, aponta o historiador.
“Uma pessoa ser alvo de violência e uma pessoa ser reconhecida publicamente como alvo de uma violência não são processos equivalentes. Isso é um fenômeno social complexo que permite que alguém que foi alvo de uma violência brutal não seja socialmente reconhecido como tal”, diz Pedretti.
À Folha o Ministério dos Direitos Humanos informou que fez a análise com base nos dados oficiais da CNV, o qual recomenda o aprofundamento de pesquisas sobre vítimas como indígenas e camponeses.
A pasta também disse que “reforça seu compromisso com a memória, a verdade e a justiça, e reconhece a importância da continuidade das investigações para o reconhecimento de todas as vítimas”.
noticia por : UOL