'Presença' se rende ao fetiche da tomada única em oportunismo estético

Nas últimas semanas, o noticiário foi inundado de análises e comentários sobre a minissérie britânica “Adolescência” e de como ela usa os planos sem cortes para transmitir efeitos dramáticos e a sensação de tempo real na amplificação do impacto narrativo. Para quem está impregnado do programa da Netflix, assistir ao filme “Presença” vai ser quase uma extensão da experiência.

O novo filme de Steven Soderbergh, que está em cartaz também com “Código Preto“, usa o recurso, chamado de plano sequência, para fins similares aos de “Adolescência” —capturar de perto a intensidade dos sentimentos dos personagens em conjunto com as relações da câmera com o espaço, os objetos e a noção de sua própria movimentação física.

A grande diferença, em termos narrativos, é que Soderbergh trabalha códigos do suspense, já que o ponto de vista dessa câmera flutuante é o de alguma entidade sobrenatural a habitar o casarão onde a ação se ambienta. O estopim dramático lembra algo do belíssimo romance de Carlos de Brito e Mello “A Passagem Tensa dos Corpos”, de 2009, que narra em primeira pessoa as andanças de alguma força insólita que estava sempre circulando ao redor de defuntos e capturando as energias e angústias das pessoas enlutadas.

Em “Presença”, também há luto e defunto. O roteiro do veterano David Koepp, agora mais contido em relação à sua trajetória de escrita, que inclui filmes das franquias “Homem-Aranha“, de “Jurassic Park” e de “A Múmia“, trata de um família que se muda para essa casa em Nova Jersey ao mesmo tempo em que uma série de crimes misteriosos na cidade deixaram abalada a filha do casal protagonista.

A entidade circula pelos cômodos a observar a interação dos quatro novos moradores, aos poucos intervindo em pequenas situações, fazendo-se presente e ao mesmo tempo apenas a vislumbrar o que acontece por ali.

A ambição de Soderbergh de fazer essa estrutura ser um misto de reflexões filosóficas sobre a existência e um exercício de medo e apreensão não acha respaldo suficiente na condução. Diferente de um filme como “Sombras da Vida“, de 2007, que também tinha um figura fantasmagórica a ocupar uma residência como forma de metaforizar a melancolia da perda, “Presença” se disfarça de filme de arte para ser, na prática, um thriller de mistério um tanto superficial sobre disfunções familiares e violência.

O fetiche nos planos longos aproxima o filme muito mais de “Adolescência”, que tem princípios sensacionalistas similares de fazer barulho e choque com virtuosismo técnico. Mas, enquanto a série ao menos se garante na relevância do tema, “Presença” vai da banalização visual ao esvaziamento contínuo de sua premissa, ao ponto de nada mais realmente importar para além de desvendar o enigma sobre quem olha e quem mata.

O filme até ensaia enveredar pela grosseria bem-vinda de um “Atividade Paranormal“, mas Soderbergh, quando decide pagar de autorista, não se permite chegar a tanto. A impressão é de que o diretor e o roteirista acreditam oferecer grandes percepções sobre a construção do horror em meio a algum tipo de aprofundamento humano, mas na prática soa apenas mecânico e artificioso.

Apesar da fluidez, os planos sequência são mais funcionais do que expressivos. A câmera subjetiva, cuja perspectiva é mantida em ambiguidade, faz as movimentações oportunamente de acordo com necessidades básicas de completar o roteiro, mesmo que para isso precise ser contraditória.

A fotografia do filme, operada pelo diretor sob o pseudônimo de praxe Peter Andrews, quebra as regras que ela mesma propõe e vai sendo readequada a cada nova cena. Com isso, o conceito de percepções não cronológicas do tempo, explicado por uma personagem, serve mais como recurso didático do que elemento de ampliação da atmosfera.

A forma e o conteúdo disputam espaço, embalados por enquadramentos distorcidos que, em vez de transmitirem a claustrofobia de um “encosto” sem ter para onde ir além daquelas paredes, portas e escadas, são apenas incapazes de capturar a angústia que se quer tratar e apela para revelações melodramáticas bem pouco interessantes.

noticia por : UOL

19 de abril de 2025 20:58

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