Faz séculos –e provavelmente milênios– que elas são conhecidas como Haenyeo, “as mulheres do mar”. É bem possível que estejamos falando da última geração de sua ilha a receber esse apelido, já que a idade média das Haenyeo de hoje é de 70 anos. Não há mais quem encare levar a vida semiaquática que as caracterizou por tanto tempo. Mas, mesmo quando todas já tiverem partido, filhas, netas e bisnetas continuarão a carregar em seu material genético as marcas de seus superpoderes marinhos.
Com efeito, ainda que não tenham aprendido a respirar debaixo d’água, as mulheres mergulhadoras da ilha de Jeju, a 80 km da Coreia do Sul continental, tiveram algumas das bases de seu metabolismo alteradas pela convivência de gerações com o mar.
Algumas das pistas acerca desse processo foram descritas num estudo que acaba de sair na revista científica Cell Reports. No trabalho, pesquisadores liderados por Melissa Ilardo, da Universidade de Utah, mostraram que, tanto do ponto de vista fisiológico quanto do genético, as mulheres do mar de Jeju carregam uma herança bastante especial.
O costume das Haenyeo, transmitido de mãe para filha desde tempos imemoriais, é mergulhar ao longo de todo o ano à cata de mariscos, pepinos-do-mar e outros recursos alimentares. Elas não costumam descer a profundidades superiores a 10 metros, e o tempo médio de cada um dos mergulhos fica em torno dos 30 segundos, mas repetem a operação ao longo de até 5 horas diárias. E fazem isso inclusive quando estão grávidas, até o fim da gestação.
Experimentos feitos por Ilardo, comparando as Haenyeo com suas vizinhas da ilha que não mergulham e com mulheres da capital sul-coreana, mostraram que seu organismo funciona de um jeito peculiar.
Numa simulação de mergulho, por exemplo (enfiar a cara num balde de água fria e prender a respiração, basicamente), o coração delas passa a bater muito mais devagar de repente, uma estratégia comum para minimizar o consumo de oxigênio, e algo que não acontece com as coreanas de fora da ilha. Um dos parâmetros associados à pressão do sangue também é mais alto entre elas, o que também facilitaria a oxigenação do cérebro durante o mergulho.
A comparação do genoma (conjunto do DNA) das nativas de Jeju com a de outros grupos dentro e fora da Coreia ajuda a entender o porquê dessas diferenças. Primeiro, a ilha passou por um considerável isolamento de milênios, fazendo com que sua população fosse consideravelmente diferente dos demais coreanos em termos genéticos.
Mas não é só isso. A pesquisa também flagrou alterações sutis, mas significativas, em áreas do DNA ligadas à produção de glóbulos vermelhos do sangue (os quais, é claro, transportam oxigênio e gás carbônico), à resistência à sensação de frio (muito útil quando você passa muito tempo debaixo d’água) e, mais uma vez, ao controle da pressão sanguínea.
É incrível, sem dúvida, mas as mulheres do mar são só um microcosmo de muitas outras histórias espalhadas pelo planeta. Cada novo ambiente transformado em habitat da nossa espécie continua impactando a evolução da nossa biologia. Ao transformar o mundo, ele também nos transforma até o fundo do DNA. Como diz aquela peixinha do desenho animado, continuemos a nadar.
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noticia por : UOL