Crítica de livros de autores negros precisa amadurecer, diz Ana Maria Gonçalves

Não faz muito tempo que a escritora Ana Maria Gonçalves trocou seu apartamento no bairro da Pompeia, em São Paulo, por outro no Rio de Janeiro. “Eu estava querendo ficar perto de água”, ela conta por telefone, com a intensidade de um desabafo.

Lembra a inquietação que a levou, em 2002, a se mudar de mala e cuia da capital paulista para Salvador, num impulso repentino. Retirada ali, aprofundou o contato com sua ancestralidade negra, mergulhou em bons anos de pesquisa e, após uma laboriosa lapidação de texto, cunhou enfim o romance “Um Defeito de Cor”.

Lançado em 2006, o livro acaba de ser eleito o melhor da literatura brasileira do século 21 em uma votação promovida pela Folha com 101 especialistas convidadoss. Levou 48 votos, 13 a mais que o segundo lugar. Sua autora recebeu a notícia durante esta entrevista, feita cinco dias antes da divulgação da lista ao público.

A mineira diz que a saga da escravizada Kehinde “vem causando grandes surpresas”, inspirando não só leitores mas exposições de arte, pesquisas acadêmicas e até enredo de escola de samba —no dia do desfile em que a Portela o homenageou, em 2024, o livro esgotou completamente. Em 19 anos de estrada, já foram vendidos 180 mil exemplares, um raro best-seller de quase mil páginas.

“Se fosse 15, dez anos atrás, não acredito que seria um livro como ‘Um Defeito de Cor’ no topo de uma lista dessas”, afirma Gonçalves ao repórter.

É que têm sido sensíveis as mudanças no mercado de livros, desde as narrativas que tomam as vitrines das livrarias até o perfil de quem senta nas cadeiras mais prestigiadas —por exemplo, as da Academia Brasileira de Letras.

Na entrevista a seguir, Gonçalves já manifesta uma vontade que se confirmaria exatamente uma semana depois, quando ela se candidatou pela primeira vez à ABL, mirando a vaga deixada pelo linguista Evanildo Bechara. Caso seja eleita, em julho, será a primeira mulher negra a ingressar na instituição.

Pensando no que significa ‘Um Defeito de Cor’ ter encabeçado a lista dos melhores livros brasileiros de literatura do século, eu me lembro de a sra. reforçar o interesse em que sua obra fosse reconhecida como literatura brasileira, além de literatura negra. A recepção avança nesse sentido?

Apesar de eu reconhecer a importância da temática da literatura negra, afro-brasileira, para marcar um determinado recorte, para promover escritores que estavam à margem das grandes editoras, acredito que a discussão tem que começar a avançar.

Não quero disputar um mercado condicionado ao que se chama de literatura de nicho. Até porque, durante muito tempo, o que é considerado literatura negra esteve refém de rótulos colocados por pessoas que não tinham a menor ideia do que aquilo realmente queria dizer.

Esse preâmbulo é importante porque não quero enfraquecer o conceito [de literatura negra] ou a luta de ninguém. Pode existir um grupo que continua achando que é relevante e tem toda uma literatura teórica sobre isso, eu concordo e luto junto, mas ao mesmo tempo eu quero disputar um lugar que sempre foi dado no Brasil a escritores homens brancos do Sudeste.

Esse mercado me interessa, principalmente porque me interessa não colocar o tipo de literatura que faço no “Defeito de Cor” como uma contraposição ou uma outra vertente da história brasileira. Não, ela é a história do Brasil —contada do ponto de vista de uma mulher negra escravizada, a partir dos afetos de uma escritora negra.

Qual o significado de ‘Um Defeito de Cor’ ter sido incorporado pelo Carnaval, uma festa negra por definição em suas origens?

A gente nunca pensou direito no Brasil a importância pedagógica do samba, dos ritmos negros. É o mesmo tipo de ligação dos Estados Unidos com o blues, o jazz, os spirituals —essas músicas e letras têm grande caráter de descarrego, de catarse. E para quem ouve tem grande caráter pedagógico.

Eu penso quantas coisas aprendi pelas letras de samba-enredo sobre a história do Brasil. As escolas de samba, os blocos afro de Salvador, as letras do Olodum, do Ilê, são aulas de história. E falam com um público que muitas vezes é afastado da literatura e de outras artes.

Acompanhei muito o desenvolvimento desse desfile no Rio. Foi uma revolução para mim. Tinha camiseta com o meu rosto sendo vendida em Madureira. Quando isso acontece com um escritor no Brasil?

Teve clube de leitura organizado pela rainha de bateria, Bianca Monteiro, na quadra da Portela. Eu assinei livros por mais de três horas ali. Extrapolou a bolha da literatura de uma maneira que nenhuma outra adaptação faria.

Houve muitas mudanças no mercado editorial desde a publicação desse romance, especialmente na questão racial. Consegue enxergar hoje um equilíbrio entre a racialidade da autoria consagrada no Brasil e a racialidade da população?

Talvez sim, houve um movimento em tudo, também na moda, no cinema, [dizendo] “no que não me reconheço, não compro”.

Porque estava chata a literatura brasileira de 20 anos atrás. Estava um saco. Você lia um livro, era como se você tivesse lido quase todos, porque era um monte de homem branco escrevendo sobre o próprio umbigo.

Eu falo que não existem leitores no Brasil, existe uma seita, e era exatamente isso. Um monte de escritores falando mais ou menos da mesma temática, mais ou menos com o mesmo ponto de vista, para um grupo determinado de leitores. Aí quando entram outras histórias, atinge um outro grupo.

Como essas histórias eram novidade, não estavam sendo contadas, elas surgem com uma força maior. Mas não tem como deixar a qualidade delas de fora da discussão —senão fica “ai, só vende porque é negro, porque é LGBT”. Não, vende porque é bom. E vende porque está suprindo uma demanda.

Nessa nova autoria, a sra. sempre defende o ‘lugar de falha’, dizendo que os personagens negros na ficção mainstream eram muito previsíveis e que os ‘tortos e falhos’ a interessam mais. Há uma melhora nesse sentido?

Durante muito tempo, a gente não punha um personagem negro, indígena, LGBT, mulher como sendo vilão de caráter duvidoso da história, porque isso iria ajudar a fortalecer um determinado estigma. Hoje a gente já consegue pôr personagens mais complexos, mais parecidos com a gente mesmo.

E é interessante que se reivindique o direito a essa falha sem que isso seja atribuído a toda a sociedade negra. Porque o que acontece é isso, quando um negro erra, “tinha que ser negro”. O peso cai na coletividade e ele não é tratado como indivíduo.

Essa individualização foi negada aos negros durante a escravatura, em que os africanos eram tratados como lote, e isso repercutia em tudo o que era criado sobre ou a partir deles. Fiquei muitos anos sem conseguir produzir absolutamente nada porque tinha medo de falhar depois de “Um Defeito de Cor”.

O crítico Luiz Maurício Azevedo traz o conceito do ‘objeto vulnerável’ nessa discussão sobre literatura negra.

A literatura branca, num contexto histórico e universal, já está solidificada o suficiente para receber críticas, para não estar no topo de uma lista como essa, e nem por isso ser muito afetada. Agora, a gente não. E acredito que isso prejudica muito a gente.

Eu tenho meus pares, com quem discuto meus textos e os deles, exatamente por isso. Porque a gente não teve a possibilidade de uma crítica debatível, discutível da sociedade para a gente.

Fica todo mundo meio com medo. Não gostou de alguma coisa, tem medo de falar e ser chamado de racista. Aí elogia muito e falam que está elogiando só porque é texto de minoria.

Tivemos que estabelecer entre nós uma rede de escuta e crítica exatamente porque não havia maturidade na sociedade brasileira para que essa crítica pudesse acontecer em público.

Ainda não amadurecemos a ponto de ventilar essas críticas?

Não. Temos muito pouco tempo de certos direitos, de ocupação de mercado. Eu entendo o medo geral de todo mundo. Mas precisa começar a acontecer.

A crítica literária no Brasil tem decaído em geral há muito tempo, com o desaparecimento de cadernos de jornais e revistas voltados a uma crítica mais cuidadosamente produzida. Cadê aqueles textos do Antonio Candido hoje em dia? Não tem, mas precisa ter.

Talvez essa crítica dos livros de escritores e escritoras negras comece a aparecer de uma maneira sincera feita por críticos negros e negras. Não sei. Mas eu sinto muita falta de poder debater meus livros e dos outros com sinceridade, verdade, conhecimento e estrutura, que me ajudaria a crescer como escritora.

As grandes instituições literárias também sempre tiveram rostos muito masculinos e brancos, como é o caso da Academia Brasileira de Letras. Atrai a sra. pensar em ocupar um espaço ali?

Ah, eu acho que a gente tem, sim. Ali é um clube, e as construções de quem entra e quem não entra são discutidas internamente. Enquanto a gente não tiver vozes dissidentes lá dentro, que defendam e conversem com outras candidaturas, a gente realmente não vai estar lá.

A ABL ainda é um espaço de disputa importante?

Todos os espaços são. Por mais que a ABL de hoje não represente o que o mercado talvez já esteja considerando como literatura brasileira. Da mesma maneira, eu acho que é local de disputa a autoria das novelas da Globo, das séries da Netflix.

Todos esses lugares são onde se produz e eterniza uma narrativa —narrativa leva a imaginário, imaginário leva a construção de sociedades. Esses lugares sempre têm que estar em disputa, não tenho a menor dúvida disso.

Antes de ser reconhecida como escritora, a sra. sempre foi uma grande leitora. O que tem gostado de ler?

Eu sou uma escritora de pesquisa, então quando estou pesquisando para um trabalho, leio muito pouca ficção. Sei lá, no último mês eu li três de ficção, o que é bem pouco para mim. Leio mais que isso por semana. Exatamente por não ter WhatsApp, não ter rede social, me sobra tempo.

Mas estou muito engajada no Brasil com a literatura da Luciany Aparecida, uma das vozes mais interessantes que surgiram com “Mata Doce”. Li o último livro da Chimamanda [Ngozi Adichie], “A Contagem dos Sonhos”. E um livro de contos maravilhoso de uma escritora do Zimbábue, Petina Gappah, que se chama “An Elegy for Easterly” [de 2009, ainda não traduzido no Brasil].

Assim como o pessoal fala de adrenalina de exercício, eu tenho adrenalina de leitura.


RAIO-X

Ana Maria Gonçalves, 54

Ibiá (MG), 1970. Formada em publicidade, exerceu a profissão por mais de dez anos em São Paulo até decidir se dedicar totalmente à carreira de escritora. Lançou o romance “Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim” pela Borboletras em 2002 e, quatro anos depois, sua maior obra, “Um Defeito de Cor”. A autora depois se voltou principalmente à escrita de roteiros e dramaturgia, como “Pretoperitamar” em parceria com Grace Passô, e à publicação de contos esparsos.

noticia por : UOL

9 de junho de 2025 7:04

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