De Eunice Paiva para o STF

Excelentíssimos ministros do Supremo Tribunal Federal,

Prometo não abusar de trocadilhos com “Ainda Estou Aqui“. Depois do filme sobre minha vida ter recebido prêmios pelo mundo e se consagrar no Oscar, venho importunar vocês, que ainda estão aí.

Em março de 1971, minha carta ao presidente Emílio Médici ficou sem resposta. Pedia ajuda para esclarecer o desaparecimento de meu marido, que eu ainda acreditava estar vivo. Reivindicava seu direito fundamental de defesa e de ser preso segundo o devido processo. Carta ao ministro Alfredo Buzaid foi também ignorada. O regime não me concedeu um atestado de óbito sequer.

Dessa Suprema Corte, a história de meu marido receberá tratamento mais digno.

O STF teve oportunidade, 15 anos atrás, de cumprir sua incumbência constitucional de responsabilização de oficiais militares por crimes contra a humanidade não cobertos pela Lei de Anistia. E tomou decisão aplaudida por torturadores.

O ministro Peluso justificou assim: “Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar”.

Foi talvez a frase mais equivocada de toda a carreira desse íntegro magistrado. A Lei da Anistia nunca foi perdão nem ato de grandeza, senão perpetuação da violência. Trinta anos depois, o STF podia reparar a covardia. Preferiu homenageá-la.

Dessa decisão houve recurso. E pouco depois foi proposta nova ação sobre o mesmo tema. Ambas, há mais de dez anos, estão nas gavetas de Dias Toffoli (ADPF 153 e ADPF 320). Ouvi dizer que o ministro sinalizou “disposição para desengavetar”. Fico encantada com o quanto pode um ministro sozinho nessa corte, mas torcemos por lampejos de coragem.

Lampejos que tiveram os ministros Flávio Dino, ao aceitar o convincente argumento de que ocultação de cadáver é crime permanente e escapa da anistia; Edson Fachin, ao prosseguir com duas ações por crimes na ditadura; e Alexandre de Moraes, ao reabrir três ações, entre as quais a que trata do crime contra meu marido. E também o plenário ao conferir status de repercussão geral ao tema do crime permanente.

Foi preciso o trio de Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Walter Salles para dar expressão ao que vivi. Ainda há tempo para algum reparo sobre o passado, mas queria também falar sobre o presente e o futuro.

A denúncia criminal contra autores da tentativa de golpe em janeiro de 2023 tem nos permitido sonhar com democracia sólida. Não se rendam à indigente mania militar de gritar “revanchismo”. A revanche contra quem comete crimes é a aplicação da lei. Criminosos seriais, de ontem e de hoje, estão nem aí para o “julgamento da história”.

Junto comigo estão outras mães e familiares de mortos e desaparecidos da ditadura militar. Estão mães de crianças pretas e de outras vítimas da brutalidade estatal. Os casos das câmeras corporais em policiais e das operações policiais em favelas têm a ver com isso.

Lembrem-se também dos indígenas. Foram pelo menos 8.300 mortos na ditadura. Foram pelo menos mil mortos na pandemia por deliberada opção governamental (dobro da taxa de mortalidade da população em geral). Protejam sua jurisprudência do revanchismo jurídico-ruralista-militarista contra a Constituição de 1988.

Respeitosamente,

Maria Eunice Paiva


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noticia por : UOL

6 de março de 2025 15:14

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