Viver a vida em multitarefa é mais um vício prazeroso do que uma virtude desejável

Uma das coisas que mais me animam de segunda à sexta é pegar o metrô.

Não digo isso por conta do apoio oferecido pelos funcionários para pessoas com deficiência, em geral bastante boa, descontado o número insuficiente de profissionais para atender a todos na hora do rush. Tampouco não conto as horas para enfrentar a Linha Vermelha lotada no horário de pico.

Uma das minhas definições de felicidade tem sido pegar o trem no contra-fluxo e viajar pela Roma dos Césares ou da Florença e Milão de Leonardo da Vinci. Assim que encontro um cantinho para sentar ou me encostar, saco os fones de ouvido da mochila e começo a ouvir meus livros para uma meia hora de diversão.

nos dias em que saio de casa correndo para ir até a academia e não dá tempo de aproveitar aquele café da manhã completo, também ressalto o gosto da leitura com uma crepioca ou uma barrinha de proteína

SE chego até minha estação bem na hora em que o coliseu está cheio para um grande espetáculo, não há problemas. Na pausa do trabalho para o almoço, saio de fininho para garantir que vou conseguir uma mesa só para mim no restaurante, coloco os fones e o espetáculo pode continuar. A volta para casa no mesmo dia ainda pode me informar sobre a perseguição aos cristãos e a virada que fez da religião perseguida a oficial do império.

Meus ouvidos estão sempre recebendo informações e não são só os livros. Ao acordar, ligo a televisão em casa para saber do trânsito. Lavo louça ouvindo podcasts ou estudando idiomas. Já corri na esteira lendo jornal para garantir que chegaria bem informado até à redação (usando sistema que lê a Folha em voz alta para mim, naturalmente).

Por não precisarmos nos preocupar com olhar a tela, para nós que temos deficiência visual é corriqueiro inclusive assistir a séries ou filmes enquanto limpamos a casa ou organizamos os armários, desde que os títulos venham com audiodescrição.

Talvez eu até alcançasse algum sucesso criando um e-book ou um curso digital sobre como ser bem informado, produtivo e fluente em mais idiomas de olhos fechados e ouvidos abertos. Eu chamaria de “APague a luz para iluminar sua mente”.

Mesmo correndo algum risco de estar perdendo muito dinheiro ao não iniciar a empreitada, minha consciência me faz desistir. É que meu estilo de multitarefa está mais para um vício prazeroso, e talvez necessário devido ao acúmulo de atividades à falta de tempo para tudo o que queremos fazer, do que uma grande conquista da humanidade.

A situação me preocupa. Deixar os momentos de prazer com os livros, a música ou o estudo para as horas em que se está fazendo outra coisa significa, na prática, não ter momentos de prazer de verdade. Na melhor das hipóteses, é uma distração para quando temos algo menos interessante para fazer. E, no fim das contas, nem a diversão nem a tarefa maçante são feitas com uma atenção completa.

Eu e minha noiva, também cega, decidimos mudar isso.

Final de semana, nos comprometemos a nos concentrar. Nada de tirar a roupa do varal ou passar o robô aspirador de pó. A missão era assistir pela primeira vez uma série no sofá de casa, quietinhos, só prestando atenção a cada sutileza da história, do texto e das interpretações. Passa a abertura. Cinco minutos dou o primeiro bocejo. Resolvemos fazer uma pipoca, que não pareceu uma infração a nossas regras de concentração absoluta. O movimento das mãos nos deixa distraidamente concentrados e atravessamos o primeiro episódio. Mas logo vacilo, cochilo e acordo com um susto. Ela ri. Mas agora é ela quem deixa a cabeça cair sobre meu ombro. Seguramos as mãos um do outro e afundamos no sofá. Acaba a temporada e tudo é silêncio. Despertamos com o sol entrando pela varanda.


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noticia por : UOL

8 de abril de 2025 6:24

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