Uma homenagem a Ignácio de Loyola Brandão

Estive em Araraquara na última terça-feira, 20, para prestigiar o evento de lançamento da Flisol 2025, a Festa Literária da Morada do Sol. O evento inaugura uma série de homenagens aos 60 anos de carreira de Ignácio de Loyola Brandão, nossa joia rara.

Aos 88 anos, Ignácio vive uma jornada de merecidas láureas, que me deixa, confesso, muito honrada por poder chamá-lo de amigo. Quando nos encontramos —e felizmente tenho conseguido isso algumas vezes no ano— rimos muito com suas sacadas, comparações inusitadas e memória de elefante.

A primeira vez que o vi foi na minha posse na Academia Paulista de Letras, em setembro de 2022, onde ele é imortal da cadeira 37. Aquela noite foi muito especial para mim, celebrada entre pessoas queridas —mas, sobretudo, por ter me pegado diversas vezes imaginando a alegria e o orgulho do meu pai e da minha mãe, que faleceram no início deste século. Eu ali, enfaixada com a cadeira 28, com o diploma na mão. Logo eu, aquela que “começou tarde” e, mesmo assim, assumiu como a mais jovem imortal da casa, a cadeira que foi da inesquecível Lygia Fagundes Telles.

Talvez pareça incomum trazer à tona lembranças tão pessoais num momento como este —mas é exatamente isso que Ignácio nos ensina a fazer com maestria: compartilhar memórias. Ele, que um dia observava o clube da elite do lado de fora, e que tanto demorou a ser reconhecido, hoje é um dos imortais das letras brasileiras e ocupa seu lugar definitivo na história da cidade.

A energia daquela noite era coisa de cinema. Márcia, sua companheira de vida, estava na plateia, ao lado da neta Antônia e de toda a família. Também estavam presentes autoridades locais, intelectuais, escritores, estudantes, artistas, trabalhadores de diversos setores. Rapidamente o teatro do Sesc ficou lotado.

Foi, de verdade, uma honra ter sido chamada por ele para acompanhá-lo de braços dados na entrada ao palco nessa data tão especial. Pude dirigir-lhe algumas palavras breves e sinceras em homenagem à sua genialidade, à vastidão de sua obra e à generosidade com que troca com escritoras e escritores mais jovens.

Sentamo-nos no palco para assistir à apresentação de viola caipira do assentamento Bela Vista —histórico na região— e, em seguida, à entrega pública do título de doutor honoris causa pela Unesp, a colenda máxima da instituição. A honraria fora concedida em 2020, no auge da pandemia, sem solenidade presencial. Nesta semana, isso foi, enfim, corrigido. Meu amigo, além de ilustre, agora é Doutor.

Fiquei grata por estar ali assistindo. Ignácio compartilhou causos inusitados —alguns hilários, como o da vez em que, num exame oral, rabiscou barbaridades matemáticas na lousa. Foi salvo por um professor que, leitor de seus textos, reconheceu naquele vexame o brilho de uma alma sonhadora.

Ao lado da filha, a cantora Rita Gullo, ele apresentou um espetáculo singular. Digo espetáculo pela forma criativa de produção do evento literário: Ignácio contava histórias e Rita entrelaçava as narrativas com músicas que interpretava de forma brilhante. Foi uma travessia sensorial, profunda, curiosa, divertida e delicada.

É muito bonito ver um mais velho ser celebrado dessa forma. Para mim, que sou mulher de candomblé, a exaltação da senioridade é uma bênção. E fico genuinamente feliz em ver meu amigo tão festejado.

Aqui, faço questão de saudar Bernardete Passos, diretora da Flisol. Uma coisa diferente que tem na Flisol é que a autora ou autor homenageado do ano é escolha de Ignácio, que é patrono permanente. Ele me escolheu em 2024 —e por isso fiz um segundo discurso de passagem de faixa— e neste ano o homenageado será o escritor Itamar Vieira Júnior, autor de “Torto Arado”.

Assim, Ignácio, que brilhou como jornalista, colunista, editor e autor de mais de 45 livros, mostra-se, graças à Flisol e a Bernardete, um curador de feira de primeira grandeza —modéstia às favas.

Bernardete concebeu uma festa muito especial, que atravessa governos, sendo decisiva para a instituição dessa política cultural araraquarense, inspiração para outras em todo o país. Ao longo do ano, estudantes da rede pública leem as obras da autora ou autor homenageado. A feira também levanta uma exposição sobre a pessoa e a cidade se envolve por inteiro.

Parabenizo, mais uma vez, a Flisol pela linda noite. A festa literária acontece sempre na primeira semana de novembro e, neste ano, promete uma programação memorável.

E ao meu querido Ignácio, desejo que seu amigo Exu —orixá que tanto vejo em você— siga abrindo seus caminhos nas encruzilhadas do mundo.

noticia por : UOL

23 de maio de 2025 4:06

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